Gustave Flaubert escreveu que “a terra tem seus limites, mas a estupidez humana é infinita”. Suas muitas cartas a Louise Colet, a poetisa francesa que inspirou o romance Madame Bovary, estão cheias de afrontas e xingamentos dirigidos a seus colegas mais insensatos. Flaubert via a burrice em tudo, desde as fofoqueiras da classe média às palestras dos acadêmicos. Nem Voltaire escapou de seu olhar crítico. Consumido por essa obsessão, Flaubert dedicou seus últimos anos a reunir milhares de exemplos para uma espécie de enciclopédia da burrice. Ele morreu antes de completar sua obra-prima, e alguns biógrafos atribuem sua morte súbita, aos 59 anos, à frustração causada pela pesquisa para o livro.
Documentar a extensão da estupidez parece uma missão impossível, mas estudos recentes sobre o tema levantam perguntas intrigantes. Se a inteligência é uma vantagem tão grande, por que não somos todos uniformemente inteligentes? E por que até as pessoas mais inteligentes cometem idiotices? Acontece que nossas medidas tradicionais de inteligência, especialmente o QI, não têm muito a ver com os comportamentos irracionais e ilógicos que irritavam Flaubert. Você pode ser, ao mesmo tempo, altamente inteligente e muito estúpido.
A ideia de inteligência e burrice como extremos opostos de um único espectro é moderna. Na Renascença, o teólogo Erasmo de Roterdã elogiou a Loucura como uma entidade descendente do deus da riqueza e da ninfa da juventude; outros autores a viam como uma combinação de vaidade, teimosia e imitação. Foi apenas em meados do século 18 que a estupidez começou a ser identificada com a inteligência medíocre, diz Matthijs van Boxsel, historiador holandês que escreveu sete livros sobre o tema. “Nessa época, a burguesia subiu ao poder e, com o Iluminismo, a razão se tornou a nova regra”, explica.
POR QUE A BURRICE EVOLUIU
As tentativas modernas de estudar a variação nas habilidades humanas de cognição concentraram-se nos testes de QI, que dão uma nota à capacidade mental de um indivíduo. Até um terço dessa variação no índice é causada pelo ambiente em que crescemos: nutrição e educação, por exemplo. Os genes contribuem com mais de 40% das diferenças entre dois indivíduos.
Essas diferenças podem se manifestar no modo como nosso cérebro está estruturado. Cérebros inteligentes possuem redes de conexões mais eficientes entre os neurônios. Isso pode determinar a capacidade de usar a “memória de trabalho”, aquela de curto prazo, para relacionar ideias díspares e acessar rapidamente estratégias de solução de problemas, explica Jennie Ferrell, psicóloga da Universidade do Oeste da Inglaterra, em Bristol. “Essas ligações neurais são a base para a realização de conexões mentais eficientes.”
A grande variação no QI levou alguns pesquisadores a questionarem um possível efeito negativo da capacidade cerebral superior. Se a inteligência não tivesse custo nenhum, por que a evolução não transformou todos nós em gênios? Infelizmente, as evidências nessa área são escassas. Alguns autores propõem que a depressão pode ser mais comum entre indivíduos mais inteligentes, o que levaria a índices de suicídio mais elevados, mas nenhum estudo revelou achados que apoiem essa tese.
As diferenças na inteligência também podem ter se originado de um processo chamado “deriva genética”, depois que a civilização superou os desafios que motivaram a evolução de nossos cérebros. Gerald Crabtree, pesquisador da Universidade de Stanford, é um dos principais defensores dessa ideia. Ele lembra que nossa inteligência depende de cerca de 2 mil a 5 mil genes em mutação constante. No passado distante, pessoas cujas mutações atrasavam seu intelecto não teriam sobrevivido para passar seus genes adiante, mas Crabtree sugere que, à medida que as sociedades se tornaram mais colaborativas, os indivíduos com raciocínio mais lento aproveitaram o sucesso dos mais espertos. Na verdade, ele diz que um viajante do tempo do ano 1.000 a.C. que chegasse à sociedade moderna estaria “entre os indivíduos mais inteligentes e intelectualmente ativos”.
A teoria costuma ser chamada de hipótese da “idiocracia”, em homenagem ao filme de mesmo nome, que imagina um futuro no qual a rede de segurança social criou um deserto intelectual. Apesar de ter seus defensores, as evidências em prol dela são fracas. É difícil estimar a inteligência de nossos antepassados distantes, e o QI médio aumentou um pouco no passado recente. “Isso desmente o medo de que pessoas menos inteligentes têm mais filhos e, logo, a inteligência vai diminuir”, afirma o psicólogo Alan Baddeley, da Universidade de York.
CULTURA IRRACIONAL
Novas descobertas estão levando muitos pesquisadores a sugerir que o pensamento humano tem mais dimensões do que as medidas pelos testes de QI, o que pode forçar uma revisão radical no tema. Críticos sempre disseram que o QI é facilmente afetado por fatores como dislexia, educação e cultura. “Eu provavelmente iria muito mal em um teste de inteligência elaborado por um índio Sioux do século 18”, afirma o psicólogo Richard Nisbett, da Universidade de Michigan, nos EUA. Sabemos que pessoas com pontuações baixas, chegando a um mínimo de 80, conseguem falar múltiplos idiomas e que QI alto não é garantia de racionalidade: pense nos físicos brilhantes que insistem que a mudança climática é uma farsa.
“Existem pessoas inteligentes que são estúpidas”, diz Dylan Evans, psicólogo e escritor que estuda as emoções e a inteligência. O que explica esse aparente paradoxo? Uma das teorias vem de Daniel Kahneman, cientista cognitivo da Universidade de Princeton que recebeu o Prêmio Nobel em Economia por suas pesquisas sobre o comportamento humano. Os economistas costumavam presumir que as pessoas são inerentemente racionais, mas Kahneman e seu colega Amos Tversky descobriram que não é bem assim. Eles demonstraram que quando processamos informações, nossos cérebros podem acessar dois sistemas diferentes. Os testes de QI mensuram apenas um: o processamento que é crucial para a solução de problemas no consciente. Mas no cotidiano, nosso modo-padrão é utilizar o sistema mais intuitivo.
Os mecanismos intuitivos nos deram uma vantagem evolucionária, pois oferecem atalhos que ajudam a lidar com a sobrecarga de informações. Eles incluem usar estereótipos, viés de confirmação e a tentação de aceitar a primeira solução para um problema mesmo que obviamente não seja a melhor (confira isso no teste do quadro à direita).
Esses vieses produzidos pela evolução ajudam nosso raciocínio em certas situações, mas também podem atrapalhar decisões quando usados sem um olhar crítico. Assim, a incapacidade de reconhecer ou resistir a eles é um elemento fundamental da estupidez. “O cérebro não tem um interruptor que diz ‘vou usar estereótipos para definir restaurantes, não para pessoas’”, explica Ferrell. “É preciso treiná-lo.”
Como a estupidez tem zero relação com o QI, entendê-la de verdade requer um novo teste para examinar nossa susceptibilidade a vieses. É o que propõe Keith Stanovich, cientista cognitivo da Universidade de Toronto, no Canadá, no seu Quociente de Racionalidade (QR — saiba mais no primeiro quadro desta reportagem). O QR servirá para avaliar nossa capacidade de reconhecer os vieses cognitivos.
Mas o que determina se você tem ou não um QR naturalmente alto? Stanovich descobriu que o QR não se resume aos genes ou fatores ambientais durante a infância. Depende da metacognição, a capacidade de determinar a validade de seu próprio conhecimento. Pessoas com QR alto desenvolveram essa consciência em algum momento. Um jeito simples de treinar isso é pegar a resposta intuitiva a um problema e considerar seu lado oposto antes de decidir. Exercícios como os do quadro da página anterior também ajudam. Mas mesmo quem tem um QR naturalmente alto não está a salvo da estupidez. “Você pode ter habilidades cognitivas excelentes, mas é o ambiente que determina como deve agir”, explica Ferrell.
Distrações emocionais podem ser a maior causa desse tipo de estupidez. Sentimentos como luto ou ansiedade ocupam a memória de trabalho, fazendo com que sobrem menos recursos cerebrais para avaliar o mundo ao seu redor. Para lidar com a dificuldade, você pode acabar recorrendo a atalhos. Ambientes coorporativos, principalmente de empresas que lidam com conhecimento, estão entre os que mais estimulam a estupidez, explica o professor da Cass Business School Andre Spicer na entrevista ao lado. Para ele, funcionários brilhantes de bancos e consultorias foram vítimas de um tipo de estupidez organizacional que ajudou a provocar a crise financeira.
Isso pode explicar por que, de acordo com Stanovich, o setor financeiro implora por um bom teste de racionalidade “há anos”. Por ora, o incipiente teste de QR não oferece um escore definitivo, é preciso comparar um grande número de voluntários antes que seja possível desenvolver uma escala para avaliar diferentes grupos. Stanovich começou a desenvolver o teste em janeiro. Se alguém vai terminar o que Flaubert começou é outra questão. Van Boxsel vai se aposentar depois do sétimo livro sobre o tema. Mas a Biblioteca do Congresso dos EUA, talvez por acidente, assumiu a tarefa: decidiu arquivar todos os tweets do mundo.
Então tá!
Andreh Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário