sexta-feira, 19 de outubro de 2012

'Moralidade total flex'

Um jovem que vive em um cubículo e mal tem dinheiro para o aluguel penhora seus bens a fim de quitar suas dívidas. A agiota é uma sexagenária que cobra juros abusivos. Matá-la, ele sabe, é errado. Mas e nesse caso, em que a vítima não é um poço de bondade e não tem muito tempo de vida? E se ele usar o dinheiro dela para ajudar outras pessoas? o ato deixaria de ser tão terrível, não? Pelo menos foi assim que pensou Rodion Raskólnikov, o protagonista do clássico russo crime e castigo. Sim, ele assassinou a velha.

Guardadas as devidas e criminosas proporções, somos mais parecidos com o personagem do escritor Fiódor Dostoiévski, criado no século 19, do que imaginamos. Temos uma tendência a buscar (e até inventar) desculpas para justificar nosso comportamento, mesmo quando nossas atitudes não parecem corretas. Ou seja, todo mundo, e você não é exceção, está sujeito a ser desonesto ou imoral vez ou outra. E, curiosamente, existem situações específicas que favorecem esse tipo de conduta até entre aqueles que costumam andar na linha. No recém-lançado A Mais Pura Verdade Sobre a Desonestidade (Elsevier, 280 páginas), Dan Ariely, professor de psicologia da Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostra com experimentos criativos como a moralidade humana usa dois pesos e duas medidas para lidar com certos dilemas. “Todas as pessoas têm capacidade de serem desonestas, mas comportar-se assim depende das situações com as quais se deparam”, diz o autor, em entrevista à GALILEU.

Com a nova obra, repleta de experiências boladas pelo pesquisador para testar o senso moral dos voluntários, fica mais fácil acompanhar o raciocínio e a decisão de Raskólnikov. Para algumas pessoas, eliminar uma senhora não parecerá tão errado se ela for cruel e se o assassino estiver movido por motivos mais nobres. Os critérios que balizam nossa moralidade são flexíveis e nem sempre ditados pelo nosso lado racional. “Depois que trapaceamos ou mentimos, tendemos a mudar nossos próprios padrões morais, de modo que ficamos eticamente mais brandos com nós mesmos”, explica Lisa Shu, pesquisadora de comportamento organizacional da Harvard Business School e colaboradora de Ariely. 

Pegar uma lata de refrigerante que não lhe pertence é tão reprovável quanto roubar uma nota de US$ 1, certo? Ariely fez esse teste no dormitório de uma universidade americana: ele distribuiu notas de US$ 1 e latas de Coca-Cola nas geladeiras dos estudantes para descobrir se eles viam diferença entre se apoderar de refrigerante ou de dinheiro vivo. Três dias depois, não sobrou uma lata sequer. As notas de US$ 1, no entanto, estavam intactas, o que sugere que acreditamos ser menos condenável nos apropriarmos de um objeto qualquer do que de algo que tem valor monetário explícito. Essa visão, aliás, nos remete a outro problema, já que vivemos numa sociedade em que o dinheiro físico perde cada vez mais espaço para o virtual. 

A biologia explica
Ser honesto, segundo os preceitos usados por Ariely, é resistir à tentação de se aproveitar de uma situação moralmente duvidosa para obter uma vantagem. Resistir não só requer energia, como depende de nossas condições física e mental. Quanto mais cansados estamos, maior é a tendência a cometer deslizes. Ariely comprovou essa teoria com outra experiência. Voluntários foram divididos em dois grupos. O primeiro (1) teve que escrever um pequeno texto sem usar as letras “x” e “z”, e o segundo (2) foi proibido de empregar “a” e “n”. A tarefa do segundo grupo era mais árdua, já que as letras “a” e “n” são bem mais comuns na língua inglesa do que “x” e “z”. Depois, ambas as turmas receberam uma nova lição: resolver operações matemáticas simples. 
Alguns participantes selecionados nos times 1 e 2 tiveram que devolver a folha com a resolução dos problemas — como não podiam mentir sobre seu desempenho, eles seriam um grupo-controle. O restante podia simplesmente apontar seus acertos, sem a necessidade de comprovar se o que anotaram era verdade. É aí que pinta aquela vontade de dar uma roubadinha. Ao devolver as folhas de resposta, observou-se que os dois grupos resolveram mais ou menos a mesma quantidade de problemas matemáticos. Mas, na hora de falar apenas o resultado, viu-se que os voluntários do grupo 2 — supostamente exaustos — mentiram mais sobre seu desempenho do que os integrantes da turma 1. 

Em outra pesquisa, Ariely descobriu que costumamos nos manter na linha pra valer quando somos lembrados do nosso compromisso com a verdade. O psicólogo dividiu, novamente, os participantes em dois grupos. Após resolver questões matemáticas, uma parte foi convidada a escrever o nome de 10 livros lidos no ensino médio, enquanto o restante teve de listar os Dez Mandamentos — que, vale lembrar, preconizam uma vida moral e religiosamente correta. Pediu-se, então, para que todos dissessem quantos problemas de álgebra tinham acertado. As pessoas que elencaram os livros da escola afirmaram ter acertado uma questão a mais do que na realidade. O grupo dos mandamentos foi totalmente sincero. “É um sinal de que as pessoas são mais honestas quando lembradas ou estimuladas a dizer a verdade”, diz Ariely. 

Um teste na linha dos que foram propostos pelo americano, incluindo a etapa dos Dez Mandamentos, foi replicado no Brasil pela pesquisadora Priscila Furtado dos Santos com 200 alunos da Universidade de Brasília. Os resultados se revelaram semelhantes: os estudantes que apenas declararam seu desempenho, sem necessidade de comprová-lo, disseram, em média, que acertaram uma questão a mais do que, de fato, tinham acertado. A diferença veio na etapa seguinte: relembrar os Mandamentos não teve um grande efeito sobre o comportamento dos brasileiros. Seríamos um povo menos puritano? 

O vírus da desonestidade 
Às vezes a desonestidade é contagiosa. Quando alguém próximo se comporta de maneira moralmente questionável e é bem-sucedido, nos sentimos tentados a copiá-lo. Para provar essa hipótese, Ariely convocou mais alguns estudantes, divididos (de novo!) em duas partes, e deu a eles algum tempo para resolver equações. O primeiro grupo, de controle (aquele que deveria comprovar seus resultados), concluiu, em média, 7 das 20 questões — o pessoal ganhava US$ 0,50 por resposta certa. Com a segunda turma, o teste foi diferente: os estudantes eram avisados de que havia um envelope com o dinheiro na mesa de cada um e que eles deveriam retirar dali o valor correspondente aos seus acertos. Logo no início da prova, um ator, contratado para se passar por voluntário, levantou, disse que tinha resolvido as 20 questões, pegou todo o dinheiro e foi embora. Era impossível ele acabar a prova em poucos minutos e os estudantes sabiam disso. Só que, no final da experiência, o segundo grupo alegou ter dado conta, em média, de 15 problemas, mais que o dobro do grupo-controle. 

Estaria aí a explicação para a teoria de que as pessoas se corrompem porque são mal influenciadas. A questão é que nem sempre enxergamos nossos próprios atos como corruptos e tendemos a suavizar a gravidade deles. Em uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais com 2,4 mil pessoas realizada em 2008, a maioria dos entrevistados julgava mais grave um policial usar seu poder para levar dinheiro de alguém do que um cidadão pagar um funcionário público para obter um favor, como tirar um documento rápido. Para a especialista Lisa Shu, somos muito mais críticos com os outros do que com nós mesmos. “A maneira como as pessoas se comportam no dia a dia interfere nas crenças morais que elas têm sobre seu comportamento, mas não necessariamente sobre o dos outros”, diz. Por isso é tão fácil condenar o Raskólnikov. 
Mas o personagem, que matou a velha agiota por considerar seu crime menos grave do que os dela, se arrependeu e se entregou à polícia — o leitor que não banque o desonesto justo agora com a desculpa de que nem vai ler o clássico porque contamos o final. O drama de Crime e Castigo ilustra, de forma drástica, é claro, como nossa mente opera diante dos conflitos morais. E, realmente, segundo a ciência de Ariely, basta um cochilo do anjinho para o diabo nos convencer. 

Dá para conter a desonestidade? 

Conheça as principais situações favoráveis aos deslizes e o que se pode fazer para minimizar nossa própria tentação 


1 Ficamos mais propensos a mentir ou cometer alguma sacanagem quando estamos cansados. Por isso, questões que envolvem dilemas morais devem ser resolvidas logo no início do dia, já que estamos mais dispostos. 

2 Barriga vazia é uma das portas de entrada para a desonestidade. Encontre tempo para se alimentar bem mesmo quando a agenda parecer cheia demais. 

3 Somos facilmente influenciados pelo mau comportamento alheio e tentados a usar a conduta dos outros para justificar nossos próprios atos. Preste atenção: não é porque seu amigo se deu bem contando uma mentira que você deve imitá-lo. 

4 Não é raro que a gente utilize medidas diferentes para legitimar atitudes erradas, como achar menos grave tomar posse de um lápis do que de um relógio que não é seu. Tenha sempre em mente que o valor do objeto roubado não muda o fato de que ele foi roubado

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI317619-17579,00-MORALIDADE+TOTAL+FLEX.html


Moral?!? Sempre polêmico...

Andreh Carvalho

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